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quarta-feira, 10 de março de 2010

A Estranha Teologia da Cabana


É fato incontestável que a igreja evangélica brasileira vive, hoje, uma profunda crise doutrinária, ética e litúrgica, crise essa que se tem espraiado por todos os campos do seu ser/fazer cotidiano. Uma das razões dessa crise, na verdade o seu fundamento primacial, radica num crescente afastamento da Palavra de Deus e, ato contínuo, num conseqüente abandono do seu caráter normativo e autoritativo para todas as esferas do nosso viver.

O princípio de que a Bíblia Sagrada é a nossa regra única de fé e de prática há muito se tem convertido numa mera retórica conservadora, num discurso ortodoxo na aparência, mas com poucas implicações para a realidade do dia a dia, notadamente a que diz respeito ao culto que somos chamados a prestar ao nosso Deus. Profetas, apóstolos, paipóstolo, entre outras nomenclaturas bem consentâneas com a explosão mística dos nossos dias, em muito têm tomado o lugar das Escrituras Sagradas, levando a igreja de Cristo ao abismo dos falsos ensinamentos, dos outros evangelhos desamparados da bênção e da chancela de Deus.

Uma das maiores evidências do quanto segmentos avolumados de cristãos têm abraçado consumadas heresias é o enorme sucesso que entre os evangélicos brasileiros tem feito o livro, A Cabana, de autoria do escritor americano William P. Young, publicado pela Editora Sextante, pródiga na publicação de livros como: Palavras de sabedoria de Sua Santidade, o Dalai-Lama, Você é insubstituível, Dez leis para ser feliz, Nunca desista dos seus sonhos, de autoria de Augusto Cury, dentre outros que têm engrossado as fileiras da autoajuda e do humanismo triunfante dos nossos dias.

Faltos de entendimento bíblico e completamente desassistidos da mínima dose de discernimento espiritual, alguns pastores, presbíteros, professores de escola bíblica dominical e líderes da igreja de um modo geral não têm poupado elogios ao livro, A Cabana, reputando-o uma verdadeira bênção, digna de ser apreciada pelo maior número de irmãos.

Será mesmo uma bênção o livro de William P. Young? Para os que o etiquetam desse modo, ele não passa de uma criativa obra de ficção elaborada para nos falar de um Deus que nos ama e tudo fará a fim de nos ver e fazer plenamente felizes. Contudo, estamos diante de uma ficção veiculadora de uma série de concepções teológicas que destoam flagrantemente da revelação que Deus faz de si mesmo nas Escrituras Sagradas.

Mack Aleens, esse é o nome do protagonista do romance, durante uma viagem que tinha tudo para se constituir apenas num momento de grande satisfação e divertimento, sofre um grande e inesperado abalo: o misterioso desaparecimento de Missy, sua filha mais nova. Após promover uma obstinada busca pelo paradeiro de Missy, Mack se dá conta de que ela foi assassinada por um maníaco cruel. Mergulhado num estado de espírito caracterizado por uma Grande Tristeza, Mack passa a cultivar um doído sentimento de mágoa e revolta contra Deus, culpando-o pela terrível tragédia que se abateu sobre ele e sua família.

Certo dia, enigmaticamente, ele recebe um misterioso bilhete assinado pelo próprio Deus, convidando-o a comparecer a uma cabana abandonada para um encontro que vai mudar completamente a sua existência: um encontro com Deus. Ao chegar a essa cabana, onde anteriormente tinha se deparado com o vestido ensanguentado de sua filhinha, Mack se encontra com aquela que se apresenta a ele como sendo a trindade, com a qual passa a interagir, e de quem recebe as respostas existenciais que vão ao encontro das suas profundas inquietações existenciais interiores.

Como se pode perceber, o livro trata de uma questão que mexe bastante com a sensibilidade das pessoas: o sofrimento, daí a razão, presumo, de ele estar fazendo tanto sucesso. Sempre que está experimentando alguma modalidade mais intensa de sofrimento, o ser humano se fragiliza e, ato contínuo, torna-se muito mais vulnerável a qualquer tipo de explicação que se proponha a colocar um ponto final e esclarecedor em tão tormentosa questão.

O problema é que, ao tentar dar respostas ao atribulado coração de Mack, o deus da Cabana se caricaturiza e se distancia, enormemente, do Deus que é revelado pelas Escrituras Sagradas. O Deus da Cabana é um mero contemplador da existência humana. Ele não é o Deus soberano da Bíblia Sagrada, o qual, antes da fundação do mundo, preordenou todas as coisas que acontecem para a sua glória, inclusive o sofrimento, que humilha o homem e o faz reconhecer a sua tremenda pequenez e dependência do Criador.

O deus da Cabana não tem nada a ver com as coisas que acontecem no universo, antes se surpreende com elas tanto quanto cada um de nós. O máximo que ele pode fazer é nos dar uma força para lidarmos com as situações adversas de modo tal que delas sejamos capazes de extrai as melhores lições possíveis. Esse deus, esculpido pela imaginação de William P. Young, é a imagem mais exata do deus inventado pelos teólogos do Teísmo Aberto, um deus que sabe sobre o futuro o mesmo que sabem as suas criaturas: nada.

O deus da Cabana não é o Senhor absoluto do universo, a quem todos têm o dever de servir e prestar culto, mas sim o deus que, voluntariamente, abdica das suas indisputáveis prerrogativas e passa a viver unicamente para satisfazer o desejo de felicidade dos seres que criou. Na Cabana, o homem é o centro de todas as coisas. O deus da Cabana se dobra diante dos caprichos e insatisfações humanas e, ato contínuo, passa a lhes dar explicações acerca das coisas dolorosas que acontecem no mundo, embora deixe claro que não é responsável por nenhuma delas.

Em direção diametralmente oposta, o Deus das Escrituras Sagradas faz todas as coisas de conformidade com o conselho da sua vontade, em consonância apenas com os decretos que, soberanamente, elaborou, antes da fundação do mundo. Porque Deus é Deus, Ele não presta conta dos seus atos a ninguém, nem a ninguém dá satisfação acerca do modo misterioso como administra a sua providência.

Deus não deu ao apóstolo Paulo nenhuma explicação por que impôs ao seu servo o sofrimento de um espinho na carne, nem muito menos atendeu à súplica do apóstolo para que ele fosse removido, apenas lhe: “a minha graça te basta” (II Coríntios 12.9). Deus não deu a Jó nenhuma explicação por que permitiu que, debaixo da sua autoridade, Satanás ferisse com tantos flagelos o seu servo, que era piedoso, temente e se desviava do mal. Pelo contrário, Deus dirige a Jó, na parte final do livro, uma saraivada de perguntas absolutamente irrespondíveis, reveladoras do seu poder absoluto e da completa fragilidade e impotência humana.

Confrontado com a infinitude de um Deus sábio e Todo-Poderoso, a Jó resta asseverar: “Bem sei que tudo podes e que nenhum dos teus planos pode ser impedido. Quem é este que sem conhecimento obscurece o conselho? De fato falei do que não entendia, coisas que me eram maravilhosas demais, e eu não compreendia. Por isso me desprezo e me arrependo no pó e na cinza” (Jó 42.1,2,3,6). O cristianismo, em nenhum momento, se propõe a dar respostas definitivas acerca do sofrimento. Como afirma Alister McGrath : “Discutir o sofrimento sem fazer referência ao sofrimento de Cristo é um absurdo teológico e espiritual. Deus sofreu em Cristo. Ele sabe perfeitamente o que significa experimentar a dor. Ele percorreu a vereda do sofrimento, do abandono, da dor e da morte, a vereda do calvário. Deus não é um suposto herói de pés de barro, que exige o sofrimento alheio enquanto ele mesmo permanece distante do mundo dos que sofrem. Ele passou pela sombra do sofrimento. O Deus no qual os cristãos acreditam e esperam é um Deus que já experimentou o sofrimento e, por isso, é capaz de transfigurar o sofrimento do seu povo”.

O deus da Cabana, como tão bem apraz aos teístas abertos, é um deus que tem no amor o seu atributo mais alto e quase indisputável, já que o seu amor é tão intenso que os seus demais atributos, a justiça, por exemplo, são sumariamente banidos. O amor do deus da Cabana, mais identificado com o idealismo sentimental dos românticos, não pune ninguém, mesmo porque a ninguém contempla como pecadores depravados e maus, mas sim como pessoas fracas, ignorantes, mas que, em essência, são consideradas portadoras de um bom coração.

Tais pessoas carecem, de acordo com os postulados teológicos presentes na Cabana, não de uma transformação radical da sua natureza caída, não do sobrenatural milagre do novo nascimento, mas sim de um aprimoramento moral das suas enormes potencialidades, com as quais elas entrarão em contato através do imenso depósito de bondade que reside dentro delas. Em suma: a teologia exponenciada pelo deus revelado na Cabana não passa de antropologia disfarçada.

O Deus das Escrituras Sagradas, adornado pela beleza multíplice de indescritíveis perfeições, é portador de variados atributos, os quais contracenam, em seu ser, de maneira rigorosamente equânime e simétrica. No ser de Deus, os atributos não conflitam, antes se exercitam na plenitude de admirável e estética harmonia. Assim, Deus é tão amoroso que envia o seu único Filho para morrer numa cruz maldita a fim de salvar pecadores indignos. Mas, de igual modo, é tão santo e justo que lançará no inferno todos os pecadores que se mantiverem rebeldes ao senhorio de Cristo em suas vidas, todos os que persistirem numa vida de amor à iniqüidade.

O deus da Cabana, estribado apenas numa flácida e complacente concepção de amor, não passa de uma desfigurada caricatura do Deus único, vivo e verdadeiro da Bíblia Sagrada cujo amor é glorioso, exigente e inteiramente conectado com a inexcedível retidão e santidade do seu puríssimo caráter. O deus da Cabana fala ao homem completamente fora e à revelia da Palavra que Ele mesmo inspirou pelo seu Santo Espírito, dando margens a que a experiência subjetiva de cada pessoa se sobreponha ao caráter normativo das Escrituras Sagradas, regra única de fé e de prática da igreja do Senhor Jesus Cristo.

A espiritualidade dita pós-moderna, dentro e fora dos arraiais evangélicos, tem priorizado, sobejamente, o subjetivismo de experiências místicas, valorizadoras mais dos sentimentos e das emoções do que aquilo que Deus afirma em sua Palavra. Não é outra a razão pela qual tanto se tem desprestigiado a doutrina bíblica em nossos dias, como se ela fosse um óbice a uma vida espiritual mais abundante.

Há quem diga, pretextando sabedoria, que devemos pregar a Cristo, e não doutrina, como se a pessoa de Cristo e a doutrina de Cristo não fossem faces inseparáveis de uma mesma e indistinguível verdade. O Deus da Cabana, convém reiterar, embora aqui e acolá cite as Escrituras Sagradas, o faz de modo aleatório, assistemático, ignorando o caráter coeso e ordenado de toda a Revelação bíblica.

O deus da Cabana é assumidamente proponente de uma salvação universalista, a qual, no final da história, alcançará a todos os homens, independentemente de eles terem crido em Cristo ou não. O deus da Cabana tem os seus escolhidos espalhados por todas as tradições religiosas do mundo, pouco importando se nelas Cristo é o centro norteador da fé ou não. O deus da Cabana é o paizão celestial que arranjará um lugarzinho no céu para todas as pessoas, sem que seja necessário que elas se arrependam dos seus pecados e depositem a sua confiança única e exclusivamente em Cristo Jesus. O deus da Cabana, como se pode ver, tem pouco ou nenhum compromisso com as Escrituras Sagradas.

Estamos, pois, diante de outro deus e, consequentemente, de outro evangelho, inteiramente distinto daquele que nos encontramos sacrossantas páginas da Palavra de Deus. Além de todos esses desvios doutrinários, A Cabana ainda apresenta uma estranha concepção acerca da encarnação de Jesus Cristo, sugerindo que a humanidade do Verbo de Deus foi compartilhada pelo Pai e pelo Espírito Santo, contrariando, ostensivamente, o que sobre esse ponto teológico é ensinado pela Palavra de Deus.

A bizarra trindade manifestada no livro, A Cabana, em muito se aproxima de uma concepção triteísta de Deus, como se a trindade fosse composta por três deuses, e não por um só Deus que subsiste eternamente em três gloriosas pessoas. A Cabana parece, de igual modo sugerir que na cruz do calvário, o Pai experimenta o sofrimento. Idéia absolutamente estranha às Escrituras Sagradas, dado que é o Senhor Jesus Cristo quem sorve até a última gota do cálice da pavorosa ira de Deus. A fim de com o seu sacrifício redimir do poder da morte, do pecado e do diabo todos aqueles a quem o Pai, antes da fundação do mundo, escolheu para serem herdeiros de uma eterna e perfeita salvação.

Enquanto o Deus das Escrituras Sagradas “é fogo consumidor” “e habita em luz inacessível; a quem nenhum dos homens viu nem pode ver” (Hebreus 12.29 e II Timóteo 6.16), e que, por isso mesmo, exige temor, solenidade e reverência de quem dEle se aproxima, o deus da Cabana é bonachão e praticante de uma camaradagem que roça a frivolidade.

Decididamente, para quem tem um mínimo de conhecimento da Palavra de Deus e, mais do que isso, se submete, inrreservadamente, à sua autoridade, não é possível considerar o romance, A Cabana, uma bênção. Não pode ser uma bênção o que, de forma gritante, se desarmoniza com a Palavra de Deus. Não pode ser uma bênção o que ensina algo que não tem a chancela das Escrituras Sagradas. Não pode ser uma bênção o que fere de morte o coração inviolável do evangelho.

O impressionante sucesso do livro, A Cabana, no meio evangélico, é uma prova cabal e indesmentível do quanto nós, igreja do Senhor Jesus Cristo, carecemos de um urgente retorno à Palavra de Deus, ao ensino puro e não adulterado de todo o conselho de Deus.

Nunca a advertência endereçada pelo apóstolo Paulo à comunidade de Corinto foi tão superlativamente atual: “Mas temo que, assim como a serpente enganou a Eva com astúcia, também a vossa mente seja de alguma forma seduzida e se afaste da simplicidade e pureza que há em Cristo” (II Coríntios 11.3). Que Deus nos dê graça e discernimento para, em meio à babel doutrinária dos nossos dias, sabermos separar a boa doutrina, que edifica e fortalece a nossa fé, do falso ensinamento, que perverte e, conforme a contundente afirmação paulina, “corrói como câncer” (II Coríntios 2.17).

Continuemos, pois, fiéis ao Deus das Escrituras Sagradas, o qual é santo, bom, amoroso, soberano e senhor sobre todas as coisas, e não nos deixemos embaraçar por caricaturas tão toscas como a que foi, antibiblicamente, esculpida pela ficção teológica construída por William P. Young. Que sejamos, sempre, como os crentes de Beréia, que cotejam o que ouvem com o que está ensinado nas Escrituras Sagradas. SOLI DEO GLORIA NUNC ET SEMPER.

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