O Natal chegou e já me trouxe um problema. Após repassar a lista dos amigos e dos presentes de Natal que pretendo dar a cada um, sobraram quatro conhecidos e uma garrafa de vinho do Porto que eu trouxe de Portugal. Preciso escolher a quem deles vou dar a garrafa e é aqui que o problema começa, pois só poderei dar a garrafa a quem gosta de vinho, celebra o Natal e o faz pelo motivo certo, isto é, a encarnação do Filho de Deus, sua concepção virginal e nascimento – que é o verdadeiro sentido do Natal e a razão da celebração.
O problema é que um deles é liberal. Celebra o Natal como festa cultural, toma vinho, mas, como seu mestre Rudolf Bultmann, não acredita no milagre da concepção virginal de Jesus Cristo no ventre de Maria. Para Bultmann, o nascimento virginal de Jesus faz parte daquela estrutura mitológica da qual o Evangelho vem revestido, e que foi uma estória inventada pelos cristãos helenistas com base em estórias similares de reis e heróis que eram filhos das divindades com virgens (Die Geschichte der Synoptischen Tradition, 1970, p. 291-292). Este meu conhecido é fã do grande liberal americano, Harry Emerson Fosdick, por sua vez discípulo de Bultmann, que num sermão pregado na Primeira Igreja Presbiteriana de Nova York, 1922, afirmou que existe muita gente cristã honesta que “acha que o nascimento virginal não deve ser aceito como fato histórico, mas como uma das maneiras familiares pelas quais o mundo antigo expressava a superioridade incomum de algumas pessoas”. Ou seja, Jesus Cristo realmente não nasceu de uma virgem e seu nascimento foi igual ao dos demais seres humanos. Não vou dar uma garrafa de vinho, especialmente do Porto, a quem realmente não tem o que celebrar no Natal, a não ser o nascimento de um homem como outro qualquer.
O outro conhecido, por sua vez, é pentecostal. Ele crê na concepção miraculosa de Jesus Cristo pelo poder do Espírito Santo, celebra o Natal, mas não toma vinho. Para ele, a Bíblia ensina a total abstinência e considera pecado até um crente beber uma taça de vinho em família. Para mim, o que a Bíblia proíbe é a embriaguês e o escândalo, mas respeito a posição dele. Se eu lhe der a garrafa, vai se sentir provocado.
A coisa se complica ainda mais com o outro conhecido, que é neopuritano. Crê no milagre da concepção de Cristo no ventre de Maria, toma vinho, mas não celebra o Natal. Ele considera o Natal como uma festa apócrifa, de origem pagã e antibíblica; o dia 25 de dezembro era a data da antiga festa pagã da Saturnália e foi transformada pelo Imperador Constantino no Natal. Seria, então, um desperdício dar a ele essa excelente garrafa de vinho do Porto.
Restou o neo-ortodoxo. No caso, este conhecido é da linha de Karl Barth. Ele diz que acredita na concepção miraculosa de Cristo, como o famoso teólogo suíço, e portanto tem motivos para celebrar o Natal. Todavia, eu confesso que nunca entendi direito o que Barth quis dizer ao afirmar acreditar no nascimento virginal. Para ele, este nascimento virginal indica o caráter sobrenatural de Jesus, é um sinal do julgamento de Deus sobre a raça humana, pois a mesma não pode produzir seu próprio Redentor e também um sinal de que Jesus Cristo é um novo começo (Church Dogmatics, I, 2, 196, 181, 177, 188, 191). Mas, ele desconsidera um conseqüência importante do nascimento virginal, que é a impecabilidade de Cristo. Barth afirmava que Cristo assumiu uma natureza pecaminosa, decaída, corruptível, e que portanto, não era perfeito e sem pecado (Church Dogmatics, I, 2, 154). Por causa disto, e porque li em algum lugar que Barth jamais bebericou vinho em sua vida pois preferia cerveja (veja os comentários a este post), é que também não posso dar o Porto ao conhecido que é bartiano.
Só me resta tomar o vinho com minha esposa e brindar aos amigos que lêem nosso blog.
Saúde!
[PS: Eu de fato trouxe de Portugal uma garrafa de vinho do Porto, mas a situação descrita acima é fictícia]
Fonte: O Tempora
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