Faz alguns anos fui convidado para ser preletor de uma conferência sobre santidade promovida por uma conhecida organização carismática no Brasil. O convite bastante gentil, dizia em linhas gerais que o povo de Deus no Brasil havia experimentado nas últimas décadas ondas sobre avivamento. “O vento do Senhor tem soprado renovação sobre nós”, dizia o convite, mencionando em seguida o que considerava evidências: o movimento brasileiro de missões, crescimento na área da ação social, seminários e institutos bíblicos cheios, o surgimento de uma nova onda de louvor e Adoração, com bandas diferentes, que “conseguem aquecer os nossos ambientes de cultos”. O convite reconhecia, porém, que ainda havia muito a alcançar. Havia um assunto em especial que não tinha muito a alcançar. Havia um assunto em especial que não tinha recebido muito ênfase, a santidade. E acrescentava: “Sentimos que precisamos batalhar por santidade. Por isto, estamos marcando uma conferência sobre o tema...”
Não pude atender ao convite. Dei graças a Deus desejo daqueles irmãos em buscar santidade. Entretanto, não pude deixar de notar que por trás dessa busca havia o conceito de que se pode ter um “avivamento” espiritual sem, que haja ênfase em santidade! Parece que esses irmãos – e muitos outros no Brasil – a prática dos chamados dons sobrenaturais (visões, sonhos, revelações, milagres, curas, línguas, profecias), o “louvorzão”, o ajuntamento de massas em eventos especiais, e coisa assim, são sinais de um verdadeiro avivamento. É esse o conceito de avivamento e plenitude do Espírito que permeia o evangelicalismo brasileiro em nossos dias. Parece que a atuação do Espírito, ou um avivamento, identifica-se mais com manifestações externas e a chamada liberdade litúrgica, do que propriamente com o controle do Espírito Santo na vida de alguém, na vida da igreja, na vida de uma comunidade.
Acredito que a santidade é deixada de lado no panorama do que a esquerda teológico-mística considera despertamento espiritual. Lamentavelmente, o escândalo da participação maciça da bancada evangélica (com esmagadora maioria de igrejas pentecostais e neopentecostais) na famigerada máfia dos sanguessugas e outros escândalos vieram confirmar, a santidade de vida, a ética e a moralidade estão desconectados por completo da vida cristã, dos cultos, dos milagres, da prosperidade em geral.
Uma análise do conceito bíblico de santidade que fosse orientada para pentecostais e neopentecostais – sempre lembrando que não estou generalizando, pois há irmãos pentecostais e neopentecostais que amam a santidade – teria de destacar os seguintes aspectos:
1 . A Santidade não tem nada a ver com usos e costumes. Ser santo não é guardar uma série de regras e normas concernentes a vestuários e tamanho de cabelo. Não é ser contra o piercing, tatuagem, filmes da Disney ou a Bíblia na Linguagem de Hoje. Não é só ouvir música evangélica, nunca ir à praia ou ao campo de futebol e nunca tomar um copo de vinho e de cerveja. Não é viver jejuando e orando, isolado dos outros, andar de paletó e gravata. Para muitos pentecostais no Brasil, santidade está ligada a esses costumes. Duvido que essas coisas funcionem. Elas não mortificam a inveja, a cobiça, a ganância, os pensamentos impuros, a raiva, a incredulidade, o temor dos homens, a preguiça, a mentira. Nenhuma dessas abstinências e regras conseguem, de fato, crucificar o velho homem com seus feitos. Têm aparência de piedade, mas não tem poder algum contra a carne. Foi o que Paulo tentou explicar aos colossenses, muito tempo atrás: “Essas regras têm, de fato, aparência de sabedoria, com sua pretensa religiosidade, falsa humildade e severidade com o corpo, mas não têm valor algum para refrear os impulsos da carne” (CL 2:23).
2. A santidade existe sem manifestações carismáticas e as manifestações carismáticas existem sem ela. Isso fica muito claro na primeira carta de Paulo aos corintos. Provavelmente, a igreja de Corinto foi a igreja onde os dons espirituais, especialmente línguas, profecias, curas, visões e revelações, mais se manifestam durante o período apostólico. No entanto, não existe no Novo Testamento uma igreja onde houve uma maior falta de santidade do que aquela. Ali, os seus membros estavam divididos por questões secundárias, havia a prática da imoralidade, culto à personalidade, suspeitas, heresias e a mais completa falta de amor e pureza, até mesmo na hora da celebração da Ceia do Senhor. Eles pensavam que eram espirituais, mas Paulo os chama de carnais (1CO 3: 1-3). As manifestações espirituais podem ocorrer até mesmo através de pessoas como Judas, que, juntamente com os demais apóstolos, curou enfermos e ressuscitou mortos (MT 10: 1-8). No dia do juízo, o Senhor Jesus expulsará de sua presença aqueles que praticam a iniqüidade, mesmo que tenham expelido demônios e curado enfermos (MT 7: 22-23).
Um leitor, certa feita me escreveu:
É necessário lembrar que não existe avivamento somente com santidade, mas com a manifestação da glória de Deus de várias formas. Isso é comprovado pelas Escrituras e pela história. Todos os avivamentos, tanto do VT como do NT, forma cheios de glória e manifestações poderosas. Avivamento só com santidade não existe, pois assim como Deus é santo, ele é Espírito e todo-poderoso também.
Eu entendi o que ele quis dizer, mas é evidente que sua tese não se sustenta. O conceito de reavivamento ou avivamento espiritual, como os próprios termos indicam, implicam trazer à vida àquilo que estava em estado de morte. O melhor exemplo é o vale de ossos secos de Ezequiel. Avivamento é quando Deus visita o seu povo trazendo-lhe vida espiritual. Esse é o conceito bíblico. Manifestações poderosas, sinais e prodígios podem existir sem que haja real avivamento. E vice-versa. O âmago do avivamento é o despertamento espiritual interior da alma da pessoa, quando suas faculdades são aguçadas e o discernimento espiritual retorna - e com ele o ódio ao pecado, o amor à pureza, o desejo de íntima comunhão com Deus, desejo de ler e ouvir a palavra de Deus e ter comunhão com os irmãos. Todas essas características são encontradas nos avivamentos espirituais narrados na bíblia, como as reformas feitas pelos reis Asa, Josafá, Ezequias, entre outros, e o grande avivamento entre os judeus que retornaram do cativeiro sob Esdras. Contudo, não houve em nenhum deles sinais e prodígios.
3. A santidade implica principalmente a mortificação do pecado que habita em nós. Apesar de sermos regenerados e de possuirmos uma nova natureza, o velho homem permanece em nós e precisa ser mortificado diariamente, pelo poder do Espírito Santo. È necessário mais poder espiritual para dominar as paixões carnais do que para expelir demônios. E, a julgar pelo que testemunhamos, estamos muito longe de uma grande efusão do Espírito. Onde as paixões carnais se manifestam, não há santidade, mesmo que doentes sejam curados, línguas “estranhas” sejam faladas e demônios sejam expulsos. Não há nenhuma passagem em toda a Bíblia que faça a conexão direta entre santidade e manifestações carismáticas. Ao contrário, a Bíblia nos adverte constantemente contra falsos profetas, Satanás e seus emissários, cujo sinal característico é a operação de sinais e prodígios. Os textos de Mateus 24: 24, Marcos 13: 22, 2Tessalinicenses 2:9 e Apocalipse 13: 13; 16: 14, por exemplo tratam disso.
4. O poder da santidade provém da união com Cristo. Ninguém é santo pela força de vontade, por mais que deseje. Não há poder em nós mesmo para mortificarmos as paixões carnais. Somente mediante a união com o Cristo crucificado e ressurreto é que teremos o poder necessário para subjugar a velha natureza e nos revestimos da nova natureza, do novo homem, que é Cristo. O legalismo não consegue obter o poder espiritual necessário para vencer Adão. Somente Cristo pode vencer Adão. È somente mediante nossa união mística com o Cristo vivo que recebemos poder espiritual para vivermos uma vida santa, pura e limpa aqui nesse mundo. È mais difícil vencer o domínio de hábitos pecaminosos do que quebrar maldições, libertar enfermos e receber prosperidade. O poder da ressurreição, contudo, triunfa sobre o pecado e sobre a morte. Quando “sabemos” que fomos crucificados com Cristo (Rm 6:6), nós nos “consideramos” mortos para o pecado e vivos para Deus (Rm 6:11), não permitindo que o pecado “reine” sobre nós (Rm 6: 12) e nem nos “oferecemos” a ele como escravos (Rm 6: 13), experimentamos a vitória sobre o pecado (Rm 6: 14). Aleluia!
5. A santidade é progressiva. Ela não é obtida instantaneamente por meio de alguma intervenção sobrenatural. Deus nunca prometeu que nos santificaria por inteiro, de uma vez só. Na verdade, os apóstolos escreveram as cartas do Novo Testamento para instruir os crentes no processo de santificação. Infelizmente, influenciados pelo pensamento de João Wesley – que noutros pontos tem sido inspiração para minha vida e de muitos -, pentecostais e neopentecostais buscam a santificação instantânea, ou a experiência do amor perfeito, esquecidos que a pureza da vida e a santidade de coração são advindas de um processo diário e incompleto aqui neste mundo.
6. A santificação é um processo irresistível na vida do verdadeiro salvo. Deus escolheu um povo para que fosse santo. O alvo da escolha de Deus é que sejamos santos e irrepreensíveis diante dele (Ef 1:4). Deus nos escolheu para a salvação mediante a santificação do Espírito (2Ts 2:13). Fomos predestinados para sermos conforme à imagem de Jesus Cristo (Rm 8:29). Muito embora o verdadeiro crente tropece, caia, falhe miseravelmente, ele não permanecerá caído. Será levantado por força do propósito de Deus, mediante o Espírito. Sua consciência não vai deixá-lo em paz. Ele não conseguirá amar o pecado, viver na prática do pecado. Ele vai fazer como o filho pródigo: “Levantar-me-ei e irei ter com o meu Pai, e lhe direi: Pai. Pequei contra o céu e diante de ti” (Lc 15:18). Ninguém que vive na prática do pecado, da corrupção, da imoralidade, da impiedade – e gosta disso – pode dizer que é salvo, filho de Deus, por mais próspero que seja financeiramente, por mais milagres que tenha realizado e por mais experiências sobrenaturais que tenha tido.
Estava certo o convite que recebi naquele dia: precisamos de santidade! E como! E a começar em mim. Tem misericórdia, ó Deus!
*Artigo publicado no livro: “Ascensão e queda do movimento evangélico brasileiro - O QUE ESTÃO FAZENDO COM A IGREJA”, do pastor Augustus Nicodemus. Pags.: 151 – 156. Ed. Mundo Cristão – São Paulo / 2008.
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